Nicolas Paulino
A face mais visível da Inteligência Artificial (IA), no dia a dia, é a circulação de imagens e vídeos gerados por comandos de texto. Porém, essa ferramenta computacional vai muito além: é capaz de analisar um gigantesco volume de dados num curto período de tempo, ajudando a organizar o presente e até fazer predições para o futuro.
Diante de um uso que só cresce no mundo, é preciso dominar a tecnologia, explorar possibilidades e extrair seu potencial benéfico. E, quanto mais cedo isso ocorrer, maiores são as oportunidades de crescimento no mercado de trabalho – que, atualmente, enfrenta carência de profissionais nessa área.
Embora tenha ganhado o público geral nos últimos dois anos, a IA já é peça de estudos de cursos da Universidade Federal do Ceará (UFC) há mais de uma década. Nas salas de aula e laboratórios, pesquisadores buscam descobrir respostas para sistemas complexos e construir novos mecanismos de processamento de dados com uso prático, extrapolando muros e preparando a população para o futuro.
Afinal, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), há um apagão de mão-de-obra especializada no Brasil. Um relatório de 2023 da Google for Startups, por exemplo, prevê que o país terá um déficit de 530 mil profissionais de Tecnologia da Informação (TI) até 2030. A grande barreira ainda é a falta de conhecimento e inovação sobre IA e automação.
Com esse cenário desafiador, uma das linhas que a UFC iniciou, neste ano, foi o projeto “IA Inclusiva – Inteligência Artificial como Política de Inclusão Social nas Escolas de Ensino Médio do Ceará através da Extensão”. A parceria com a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) tem foco em promover capacitação tecnológica e segurança digital.
Ainda na fase piloto, 69 escolas que ficam próximas aos campi da Universidade nos municípios de Itapajé (berço do projeto), Crateús, Sobral e Fortaleza serão apoiadas. A previsão é que cerca de 150 professores e 600 alunos sejam atendidos. Conforme a Seduc, serão beneficiadas:
- 60 escolas de Fortaleza
- 4 de Sobral
- 3 de Itapajé
- 2 de Crateús
A Pasta explica que, para o Interior, o principal critério foi a parceria das escolas com a UFC. Já na Capital, focou em unidades com necessidade de melhorar o desempenho dos estudantes, bem como outras com cursos profissionalizantes na área de Informática.
Julio dos Anjos, professor do campus Itapajé e idealizador da IA Inclusiva, entende que mesmo com todo avanço da IA nos últimos anos, essa tecnologia ainda está na “primeira infância”. Ou seja, muito ainda deve ser feito na formação de técnicos e de novos talentos para a pesquisa.
“Não é só passar o conteúdo, escutar e virar as costas. Estamos formando professores e alunos para eles entenderem que a tecnologia é uma ferramenta como qualquer outra, mas deve ser usada de forma inteligente”, destaca o doutor em Ciências da Computação.
Durante 12 meses, alunos do 1º e 2º ano do Ensino Médio devem participar de uma capacitação de 120 horas, dividida entre formações presenciais (80 horas) e remotas (40 horas).
Segundo o docente, a Empresa de Tecnologia da Informação do Ceará (Etice) assumiu o compromisso de qualificar os laboratórios das escolas envolvidas, melhorando a conexão de dados e instalando equipamentos adequados.
Outra proposta do projeto é que, depois das escolas-piloto, a Seduc passe a ofertar, a partir de 2026, uma inédita disciplina sobre IA para estudantes do Ensino Médio.
Em nota, a Seduc informou que está elaborando o Plano de Educação Digital do Estado, com previsão de finalização ainda em 2025. O documento tem como base as diretrizes da Política Nacional de Educação Digital (PNED), instituída em 2023.
“Esse plano busca nortear a política de letramento digital dos estudantes de maneira transversal, em todos os componentes curriculares. Será o básico para analisar o que está disponível e para saber fazer escolhas, para trabalhar a ética no uso da inteligência artificial, principalmente em relação à desinformação, que gera muitos transtornos”, ressalta a Pasta.
Até familiares serão capacitados
O conteúdo da capacitação é organizado em quatro módulos:
- Lógica e Conceitos Básicos de Programação: deve contribuir para melhorar os índices educacionais do Ensino Médio, sobretudo nas disciplinas de Matemática e Física
- Letramento Digital e Segurança na Internet: ajudará a identificar fraudes e a diferenciar mensagens reais das produzidas por máquinas
- Introdução à Inteligência Artificial: explicará como a ferramenta funciona e como utilizá-la de forma benéfica, inclusive no mercado de trabalho
- Técnicas de Introdução à Robótica Educacional: em todo o processo, os alunos devem aprender “brincando”, com o objetivo de fixar os conhecimentos
“Precisamos preparar as pessoas. A China já está dando conceitos de IA no primário, para as crianças conviverem com ela desde cedo. As pessoas não podem se assustar e sentir a máquina como ameaça, mas como aliada”, entende Julio.
Com esse objetivo, até os familiares dos participantes terão momentos de aprendizagem. A ideia é que os parentes também acumulem conhecimentos e evitem ser vítimas de golpes na internet. A perspectiva é que mais de 1.200 pessoas nesse perfil sejam impactadas.
Além disso, os professores treinados receberão uma certificação exclusiva do Deep Learning Institute (DLI) da Nvidia, importante empresa norte-americana do mercado de computação de IA da qual Julio é instrutor e que apoia o projeto.
Outro benefício envolve a própria equipe do projeto: são 11 professores e cerca de 70 estudantes implantando o modelo nas escolas públicas e desenvolvendo material didático, atividades e avaliações. Após a conclusão da primeira turma, prevista para agosto de 2026, o projeto poderá ser renovado e ampliado para outras instituições de ensino.
‘Vale do Silício cearense’
A iniciativa de Extensão – elo entre o conhecimento produzido na universidade e a sociedade – foi originada no Projeto de Inteligência Artificial Aplicada (PIA), desenvolvido no campus de Itapajé. Implantada em agosto de 2021, essa unidade é a “caçula” da UFC no interior do Ceará, a cerca de 130 km de Fortaleza.
Hoje, o equipamento oferece três cursos de graduação voltados para a Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC): Análise e Desenvolvimento de Sistemas, Ciência de Dados e Segurança da Informação.
Por meio da tecnologia, o campus busca induzir o desenvolvimento socioeconômico da região do Vale do Curu – possível de ser transformado em um “Vale do Silício cearense”, na visão do professor Julio dos Anjos. O termo se refere ao maior polo tecnológico e de inovação dos Estados Unidos e do mundo.

Para o docente, a região tem potencial para o empreendedorismo e a criação de startups com alto valor agregado, aproveitando-se da proximidade com o Complexo Portuário do Pecém e de parcerias com empresas gigantes do setor, como Nvidia e Huawei.
“É uma engrenagem: por meio da educação e do ensino, haverá mais conhecimento, geração de negócios e geração de empregos – e não mais de baixa remuneração. A Universidade não é mais só uma prestadora de serviços em educação, mas uma indutora de desenvolvimento para as regiões”.
“Todos os nossos cursos obtiveram nota máxima no MEC (Ministério da Educação) e nós, professores, estamos trabalhando para que Itapajé seja um Vale de inovação e desenvolvimento de tecnologia. Aqui, o aluno está se formando com alto grau de especialização”, destaca.
No campus, por exemplo, ele cita a construção de drones de monitoramento ambiental, totalmente autônomos, que levantam voo sozinhos e coletam informações importantes, como princípios de incêndio.
Além de Itapajé, Júlio observa que o campus de Quixadá hoje é um grande polo de desenvolvimento tecnológico para o Ceará. Assim, aos poucos, a UFC vai criando uma rede de inovação “onde antigamente não tinha”. “Existem condições plenas de se desenvolver localmente esses municípios para que cada um mude a sua realidade”, percebe.
Interiorizar a extensão
O projeto da IA Inclusiva faz parte da Rede de Extensão para o Desenvolvimento Integrado de Ações Intersetoriais em Territórios em Situação de Vulnerabilidade (Rede Interset-CE), uma parceria inédita no Brasil junto ao MEC. A ação aportou R$ 1,1 milhão para a execução dos 13 projetos tocados pela UFC.
Segundo o coordenador geral da Rede e pró-reitor adjunto de Extensão, professor Estevão Rolim, o grupo estabelece um diálogo interprofissional com áreas como assistência social, saúde, esporte, cultura, direitos humanos, meio ambiente e inovação, sempre em articulação com os sistemas de educação básica locais.
Além da UFC, outras seis instituições de Ensino Superior cearense conseguiram aprovação de projetos de Extensão, que devem durar um ano e passar por etapas de monitoramento e avaliação.
“Interiorizar é essencial para atender ao perfil dessa Rede. Com a curricularização da Extensão – todos os nossos cursos de graduação precisam ter essas atividades extensionistas – os alunos dos campi do interior terão uma excelente oportunidade de atuar em projetos de grande relevância para a formação deles”, ressalta o coordenador.
Além da Rede, adianta Estevão, essas atividades devem ganhar mais estímulo de um novo edital da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), previsto para 2026, articulado também por meio da Interset. “Conseguimos esse fomento para que a Extensão pulse de forma mais vibrante”, afirma.
De fato, a ampliação das atividades em todos os campi da Universidade é uma das principais estratégias da atual gestão da UFC. “Precisamos de expansão”, defendeu o reitor Custódio Almeida, em balanço dos dois anos à frente da instituição. “Se a gente não se expande, um monte de gente inteligente, com potencial gigantesco, não vai ter a oportunidade de mudar suas vidas e as das suas famílias”.
Segundo ele, as unidades fora de Fortaleza devem receber novos cursos em breve:
- Quixadá – Inteligência Artificial e Cibersegurança
- Russas – Medicina e Engenharia de Computação
- Itapajé – Teatro, Pedagogia, Letras (Português/Inglês), Matemática, Física e Animação/Jogos Digitais, além de um Teatro Universitário
- Crateús – Odontologia, Terapia Ocupacional e Fonoaudiologia

Todos os campi também passam por obras de infraestrutura, com a construção de blocos didáticos, bibliotecas, laboratórios, quadras poliesportivas e refeitórios. Além disso, a Universidade conseguiu verbas para a construção da Estação Científica de Jericoacoara.
Na capital, esses trabalhos envolvem o novo campus Iracema, que será sede do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) e do Centro Tecnológico de Ciências Naturais (CTCN); um novo Hospital Universitário de 17 pavimentos, no Porangabussu, e um equipamento dedicado à arte e cultura no lugar onde ficava o histórico Edifício São Pedro.
Rede de habilidades
Esse projeto de expansão também envolve a Inteligência Artificial. Em 2020, a UFC conseguiu aprovar a criação do Centro de Referência em Inteligência Artificial (CRIA), instalado oficialmente no campus do Pici, em 2023. A subunidade acadêmica é voltada para pesquisas aplicadas em IA, ciência de dados e big data.
O CRIA foi impulsionado e tem como principal mote o projeto CEREIA (de sigla homônima), que tem sob seu guarda-chuva 6 linhas de pesquisa, todas com foco no uso de dados para resolver desafios da saúde. Através deles, a IA é testada em sistemas:
- para identificação de doenças crônicas
- de apoio no diagnóstico de exames de imagem
- facilitação de processos de anamnese
- métodos para engajar pacientes em tratamentos de médio e longo prazo
- monitoramento inteligente de pacientes em UTIs a partir de biossinais como frequência cardíaca, pressão arterial e temperatura
- desenvolvimento de interfaces para auxiliar o usuário leigo a localizar e tratar dados e documentos médicos
O projeto envolve uma complexa colaboração de diversas instituições, incluindo a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI), o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), universidades parceiras e a Hapvida, operadora de planos de saúde e odontológicos que tem milhões de beneficiários em todo o país.



Para o diretor do equipamento, o professor José Soares de Andrade Júnior – que também é docente do Departamento de Física e Cientista Chefe de Dados em Saúde do Ceará -, a parceria entre a academia e o setor privado é crucial para a inovação porque permite a troca de informações e a gestão de interesses.
“Você tem um espectro gigante de pessoas tanto de regiões geográficas quanto de classes sociais diferentes, o que representa uma mina de ouro em termos de dados para serem analisados em vários aspectos da saúde. Isso pra gente foi extremamente interessante e muito rico do ponto de vista estatístico”, avalia.
“Eu acho que a universidade precisa sair do seu castelo para entrar no mundo prático e, de alguma maneira, ajudar a melhorar a qualidade de vida dos cidadãos”.
Na prática, o CRIA aglutinou diversos laboratórios de tecnologia da UFC na mesma direção. Por isso, o diretor ressalta o caráter interdisciplinar da iniciativa para a evolução das pesquisas.
“É isso que garante que áreas distintas do conhecimento possam colaborar de maneira integrada. A gente tem que conversar com o médico, e o médico tem que colaborar conosco para nos aperfeiçoar”, garante.
Assim, ao aliar investimentos e esforços científicos, o CEREIA se torna um projeto estratégico tanto para os setores público e privado de saúde como para a Universidade, que tem nas mãos um grande volume de dados disponíveis para serem analisados e transformados em publicações científicas, principal moeda da academia.
IA não vai nos dominar
“Quando a ciência chega com uma inovação, a gente pode até se assustar com as possibilidades, mas tem que se adaptar”, responde o especialista, ao ser questionado sobre a perspectiva de a IA suplantar o trabalho humano. Contudo, ele é categórico: “acho que ela não vai substituir”.
Como observa Soares, as inovações que a IA e outras áreas da ciência da computação vão atingir serão sempre guiadas por ideias humanas. O próprio ChatGPT, mais conhecida IA generativa atualmente, cria conteúdo novo, mas sempre a partir de combinações de conteúdos humanos previamente disponibilizados.
“Essas ideias são produto do nosso conhecimento ao longo dos séculos. Então, não há como escapar da participação humana, e acho que ela não vai ser reduzida. Ao contrário: não vejo a IA como substitutiva, mas como uma melhoria no que se refere à qualidade de vida das pessoas e às suas atividades em geral, qualquer que seja”, pensa.
Apesar do otimismo, o professor defende que haja restrições e regulamentações especialmente na utilização de dados sensíveis – aqueles que, quando revelados, podem gerar algum tipo de discriminação, como orientação sexual, religião e espectro político -, seguindo as diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Devido a esses conflitos éticos, o futuro exige profissionais comprometidos justamente com a causa humana, como sustentou o discurso da professora Juliana Diniz Campos, do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, durante colação de grau no fim de agosto. Para ela, é um “delírio” imaginar que, num futuro próximo, as humanidades sejam um saber dispensável.
“Neste futuro que é quase presente, em que viveremos em meio a robôs e máquinas pensantes, vamos precisar cada vez mais daqueles que estudaram e que compreendem aquilo que nós só nós temos e que os robôs não acessam: a nossa fragilidade. Vocês, que compreendem o valor das perguntas e das dúvidas mais do que das respostas, são a esperança de que nós poderemos nos salvar do fim do mundo”, destacou.
O reitor da UFC, Custódio Almeida, reforçou o papel da Universidade como geradora de autonomia e liberdade de pensamento, elementos importantes para “combater mentiras e preconceitos” que podem tornar a sociedade “violenta e intolerante”.
“É na universidade onde as nossas múltiplas inteligências são ativadas todos os dias. É aqui que a gente se esforça para prever problemas futuros da sociedade, fazer prevenções e trazer soluções”, apontou, referindo-se aos concludentes como “antídotos contra a dominação da Inteligência Artificial”.